Sobre

Daniel Vasilenskas Gil é poeta e ensaísta. Doutor em Letras Vernáculas/ Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, seus estudos se voltam sobretudo para a cultura e a poesia brasileira. Foi músico da Companhia Folclórica do Rio e é membro efetivo na Editora UFRJ. Integra frequentemente pesquisas sobre Vinicius de Moraes para as editoras Companhia das Letras e Nova Fronteira, por meio das quais desenvolve curadoria e fixação da obra poética. É autor, entre outros, de O amor curvo (Oito e Meio, 2018).

D

Minha amiga, não chame o seu amigo
De “amigo”. Antes, dê-lhe uma facada
No abdômen e tire fora o seu umbigo
Mas “amigo” é palavra atormentada.

Um “não” certeiro, pronto! e mais nada
Ou de comparsa, cúmplice ou prefira
Chamar de transviado, Pombajira
Mas nunca dessa música assombrada.

Os homens, minha amiga, têm o mal
De perturbar aquilo que é normal
E um dia se perturbam com o amor

E noutro com a palavra… Por favor
“Gosto muito de ti, eterno amigo!”
Nem que muito mereça o inimigo.


§

E

Eu te amo com espanto
E solidão.

Com as lâmpadas oblíquas
Do céu fechado

Da roupa esgarçada
Do incrédulo que reza
E não sabe.

Amo como um troglodita
E não te digo

O amor curvo
Feito criança com medo.

Mas esse meu amor
É mais bonito que a água

É simples como um tropeço
É maior que o tempo

Esse adivinho espantado
Ensimesmado.

Eu te amo como quem
Já não acreditava.
Juro.


§

G

O amor perpassa o policarbonato
A matéria magnética dos discos
Kubricks, polanskis, a anteposta luz
Ainda a desvelar. Seus dentes místicos

Incidem sobre cordas, pregadores
As roupas gotejantes da semana
A máquina, a memória (tudo gira
E se desbasta, mas o amor acorda

As cortinas). O vidro se trepida.
Chaves, página, tábua de cortar.
O amor combina as borras do café
Imbica a direção dos passos, vai

Sem destino imediato. Não colide
O espelho, a reflexão, os Four Quartets
O elétrico aparelho de afeitar
Na pia (em nada se depara, o amor

Renasce de si mesmo, sucessivo
Sem tributos à morte). Seus anéis
Tintinam o interior impermeável
As realizações. O amor se lança

Ao termostato, às linhas de drenagem
Acondiciona serpentinamente
As paredes, o jeans na maçaneta.
Súbito sobressai das luvas de

Boxe, da vida oculta dos cabides
Do juramento inabalável (dentro
Da vibração do dia, sempiterno
Emenda sonho e vigilância). Tufa

Os travesseiros. O edredom intui
Adivinha sua própria gramatura
À investida do amor. É ele! o sopro
O movimento que repousa

Em mim, em ti, Amor da minha vida.


§

J

Nem eram violetas de Verdi
Cindidas na manufatura
De Giorgio Germont
Nem violas d’amore e seus
Olhos vendados e
Fendas eivadas em armas
Flamejantes
Nem versavam a
Voz chilena, o folclore
Advertido
Ou menos se atinavam
Do asteroide 557, dependurado
Na cintura orbital
Nem eram, especialmente
As violetas no vaso
Invioláveis
Nunca se afunilaram
Nos limites do jardim. Eram
As violetas no chão
Ao pé dos passantes
Ouviam as rodas da rua
Nenhuma gaiola — pássaros
Pousados.


§

K

Tem nos lábios o gesto forte:
Seu gesto forte é cor de rosas
Tem na pele o palor dos dentes
Tem olhos úmidos e verdes como o lodo.

Aureoladas pétalas
Como se um dia o cobre se pusesse
Macio, rio com despenho
De pétalas: o fio
De cobre do cabelo.

Tem: é riquíssima.
Herdeiro do horizonte
O azul das águas não vai ter o quanto.

Sua vida é uma espada luminosa
E no andar a postura prateada
Suas luzes se deitam lúbricas
Na noite tem a copa mais vermelha.

Tem seios tão precisos como um tom de cor.

Minha paixão é límpida
Como o leite.


§

L

1.
Dar de galocha no ouro:
As chances de Philip Pirrip
Por alto, eram baixíssimas.
E descabidas, um pouco:
Ou Estella virava outra
Ou seria um outro, Pirrip.

2.
São quantas mágicas o circo?
Esferas vermelhas se furtam
Naufragam, mas subitamente
Se multiplicam! — Similares
Às sílabas do amor há muito
Embargadas… E como é forte
Vigoroso, quantos ponteiros
Param durante os exercícios
Dos quadríceps do trapezista!
Eles enlouqueceram tantas!
Foi da habilidade acrobática?
Ou dos entalhos, do circuito
Da musculatura? De quantas
Petulâncias enlouquecidas
Armou-se a metodologia
Do domador das bestas-feras?
Qual bravura! Que atrevimento!
— Malabarista dos instintos
Almeja ser menos selvagem…
Na viril e delicadíssima
Arte do atirador de facas
Algo entre excitação e medo
Imobiliza a mulher-alvo:
É quando se deitam as flechas
Dessa incurável insensatez!
Mas ambição mesmo seria
Acender os cinco sentidos
A cada expressão. Ao menor
Suspiro, cuspir do calor
Que se desaperta no peito.
— Cuspidor de fogo, tua mágica
Murmura na melancolia?

3.
Abrir um livro
E em vez de histórias
O sobressalto dos
Cupins.

4.A lona incandescente
Caía como gotas de fogo
O bombeiro bradava “quem está vivo levanta a mão”
A elefanta esmagou crianças e adultos, em disparada
A elefanta salvou centenas ao
Abrir um rombo na lona incandescente
O país virou referência em cirurgia plástica
A mãe reclamou que os três chegaram
Sujos de fuligem
A sobrevivente conta que recebeu a extrema-unção
Voluntários enterravam os mortos em um
Cemitério construído às pressas
Um pequeno empresário obteve uma revelação divina
Deixou a mulher, quatro filhos
Virou profeta.

5.
Dar de galocha no ouro:
As chances de Philip Pirrip
Por alto, eram baixíssimas.
E descabidas, um pouco:
Ou Estella virava outra
Ou seria um outro, Pirrip.


§

T

Os quatro encapuzados não mataram
E rasuram sorrisos num feedback.
The art of stealing isn’t hard to master

Nem é algo de todo sem mistério:
O mais bobo xereta constrangido
Meu celular, temendo ir pro inferno

Enquanto o mais cruel sorri da ínfima
Quantia em cash (e logo se encapota).
O bonitão vê o livro, “Antonio Cicero”

E se espanta pensando no blackout…
O maioral, ao largo do conluio
Consegue ouvir seu timing no relógio —

Pudesse ser a vez de qualquer um!
Os quatro encapuzados não mataram.


§

U

Dobro minhas
Mãos em seu corpo.
O pensamento é um sonho cheio de sede e
Há crianças em seu olhar, ouvindo
Uma promessa. A noite é irreversível.
Jamais vamos nos descobrir e
Molhar o rosto. Somos uma ficção imortal.
As roupas no chão se olham como taças de vinho
Uma delas quebrada. O quarto
É um tecido levíssimo que nos veste sem número
Aqui cabem as casas, os cafés
Os cardumes, caminhos de ida
As tiras metálicas do céu noturno de onde
Serenavam cenas do futuro. A lua é nova
É necessário aguçar-se à
Sensível cicatriz na escuridão
Ao regresso da hora em que riscamos um
As vértebras do outro
E as gargantas colheram, desde cedo
Esquadrinhar o incalculável
Do amor, o movimento, o universo
Desembestado bumerangue sem
Oeste. Dobro meu
Corpo em seu corpo. Acende figuras de água
No côncavo das costas, inventa
Gostos, óleos, línguas
Emaranha com arte artérias
Inocência e impiedade. No peito há um bicho
Que bate duplamente
Enquanto vincos dessa entrega alteiam seu
Carrasco descoberto.


§

Y

Ao passar pelos meses, pelos anos
Vivo em minha memória nossos dias
Os dias que morreram no passar
Neurótico do tempo, mas que vivem

Como vivem na mente de um infante
As imaginações de algum futuro.
Passam e sobrevivem onde vivo
Como se nada houvesse acontecido

Como se nossos dias nos ainda
Fossem surgir ou como se me fossem
Uma ideia inventada de repente
Que ao ver um vulto foge, estranha ave

Ao passar pelos meses, pelos anos
Como se nunca houvesse acontecido.


§